Você já parou para pensar no papel que a infância exerce no seu dia a dia? Para algumas de nós, essa fase da existência permanece enclausurada nos álbuns de fotografia. Atestado de que a aurora da vida ficou para trás, como um fato irrevogável. Nem tanto. A leveza, a curiosidade e a alegria infantis podem e devem nos acompanhar até o último suspiro. Viva!
“Infelizmente, muitos adultos perderam a vez na magia da existência e, com ela, seu poder de transformação. Eles se fecham no sofrimento e dentro do medo de viver”, escreve a psicóloga e arte-terapeuta canadense Alexandra Duchastel no livro O Caminho do Imaginário – O Processo de Arte-Terapia (Paulus).
Em algum momento de nossa trajetória, trocamos o andar ereto e comportado pelas cambalhotas; a lente colorida do caleidoscópio pela ótica cinzenta das preocupações e das responsabilidades. Transição necessária para se alcançar a maturidade. Não há dúvida. No entanto, o radicalismo dessa virada é totalmente dispensável, uma vez que nada nos proíbe de carregar nossa criança interior para todo canto.
Carregando mundo nas costas
Se por um lado inexistem leis cerceando o direito à galhofa, por outro, há um pelotão de urgências nos convocando aos embates. Quem carrega o mundo nas costas conhece bem o peso da armadura. “As obrigações diárias decorrentes do estilo de vida moderno, somadas à acirrada competitividade entre as pessoas e à necessidade de galgar postos no âmbito do trabalho, nos afasta das dimensões do simbólico e da imaginação”, afirma a arte-terapeuta Mary Porto, autora de O Ciclo das Mandalas – Uma Metamorfose em Sete Passos (Antroposófica). Some-se a isso uma dose extra de autocensura. Afinal, carregamos dentro de nós uma cartilha implacável, cheia de normas do que é ou não socialmente aceito. E, liberar o lado infantil, com certeza, não está entre o que se espera de nós na vida adulta.
As propostas indecorosas
Acontece que, quando abandonamos nossa porção inquieta e sedenta por descobertas, nós nos entristecemos de muitas maneiras. Seja por que recusamos propostas indecorosas, como devorar um doce sem nos preocuparmos com a dieta, fazer uma viagem de última hora, com a roupa do corpo, seja por que deixamos de notar as mensagens escondidas em gestos e situações corriqueiras.
A perda da imaginação
O melhor retrato da perda da inocência está no clássico O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. Reclama o narrador logo no início da obra: “As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo para as crianças estar a toda hora explicando”. Se você não se lembra dessa passagem, faço questão de rememorá-la. O piloto nos conta que, quando pequeno, mostrou a vários adultos o desenho, feito por ele, de uma jiboia que havia devorado um elefante. Para sua indignação, todos, sem exceção, enxergaram em seus traços um chapéu. Que falta de imaginação!
Quando a severidade dá o tom
Pois é, a necessidade de se apoiar na lógica para, assim, decifrar o mundo faz com que a maioria leve ao pé da letra a expressão “penso, logo existo”, cunhada pelo filósofo francês René Descartes. Ante uma crença tão arraigada, fica difícil valorizar o universo lúdico e imaginativo. Aí, a severidade passa a dar o tom de nossas escolhas. “A vida se torna maçante porque nos esquecemos de brincar. Dessa forma, nossa criança interior, presa, ressentida e machucada, não ousa se manifestar no dia a dia”, diz Ligia Miragaia, arte-educadora, ilustradora e coautora da série de livros infanto-juvenis Heróis da Verdade (Omnisciência). “Precisamos resgatar essa dimensão de nosso ser, pois ela nos ensina a perceber a magia de cada momento.”
Conexão refeita
Podemos nos reaproximar dessa fase da vida, aparentemente distante e inacessível, relembrando de onde vinha o estímulo para sorrir ou mesmo observando o comportamento dos pequenos da família. “As crianças aprendem a enfrentar os ensejos da vida por meio do jogo e do prazer da criação”, diz a psicóloga canadense Alexandra Duchastel. Caso tenha dificuldade em se colocar na pele da menininha que um dia você foi, siga a orientação de Ligia Miragaia, e tente rememorar sua brincadeira preferida: “Comece a se envolver com esse passatempo, como se estivesse totalmente presente no ato de brincar, como naquela época em que essa criança estava entregue ao momento, sem pressa, sem preocupação, com inteira confiança na vida”. Segundo ela, a experiência nos devolve a sensação de completude experimentada pelos infantes, para quem só existe o prazer proporcionado pelas atividades lúdicas, capazes de absorver toda a atenção. “Uma das razões que nos impedem de desfrutar deleites desse tipo é o excesso de pensamentos que nos levam para o passado ou para o futuro, causando enorme desgaste”, alerta Ligia, e lembra: “A respiração nos conecta ao momento presente, atitude que nos faz perceber o encantamento da vida que pulsa à nossa volta”.
A dramaterapia
A arte-educadora utiliza a dramaterapia, vertente criada pela terapeuta holandesa Jessica Westerkamp como ferramenta de trabalho. O método direciona técnicas teatrais, jogos, contos de fadas e vivências biográficas para o tratamento de diversos casos clínicos, como o estresse, os bloqueios emocionais, os traumas, as disfunções alimentares e familiares, além da dependência química. “Por meio dos exercícios, a pessoa vai se reintegrando à esfera do sentir, equilibrando, dessa forma, o âmbito racional e o emocional”, constata Ligia.
Tintas e pincéis
A mesma metamorfose é perseguida pela arte-terapeuta Mary Porto com a ajuda das tintas e dos pincéis. “Uso as cores e os símbolos para estimular o lado não verbal e imaginativo nos pacientes”, diz a especialista. Envolvidos por essa inspiradora tarefa, eles vão relaxando e reencontrando seu eixo. “Muitos chegam com dores na coluna, pressão alta, síndrome do pânico, bruxismo, decorrentes de estresse.”
Tocando a alma
Diferentemente das aulas de arte tradicionais em que os alunos perseguem o aprimoramento técnico e estético, na arte-terapia o objetivo é expressar o que toca a alma e, assim, resgatar o colorido interior. “Os temas propostos afinam-se ao estado de espírito e às necessidades emocionais de cada paciente”, diz Mary. As estações do ano, o nascer ou o pôr do sol, ou até mesmo os grandes mestres da pintura costumam inspirar as pinceladas terapêuticas.
Vendo as coisas de outro jeito
O mais importante, contudo, é o alcance desse trabalho. Uma hora, a arte invade a moldura da vida, transformando-a de dentro para fora. “Muitos pacientes, antes adeptos de roupas sérias e monocromáticas, passam a usar peças coloridas”, conta Mary, satisfeita. Ainda mais comovente é o caso da mulher que, depois de se envolver com a arte-terapia, notou, com um atraso de dez anos, que a árvore em frente a sua casa dava flores. “O colorido esteve lá o tempo todo, só que ela não o via. Por isso, acredito que a alegria renasce quando passamos a ver as coisas de outro jeito.”
Colorindo o olhar
Do mesmo jeito que a repetição dos movimentos leva à rigidez dos músculos e das articulações, a rotina pode embaçar nosso olhar, nublando até mesmo os dias de sol a pino. “As pessoas, quando param, só conseguem pensar na próxima tarefa. Precisamos acabar com esse tormento”, sugere Mary. Para nossa sorte, gestos simples têm o poder de nos devolver o ânimo e a soltura. “Preste atenção em sua criança interior. Repare no que ela precisa, dê espaço para ela se manifestar. Pare e leia um conto de fada”, sugere Ligia. “Faça pausas durante o trabalho para ler poesia, para admirar uma árvore da janela, coloque na mesa uma pintura ou uma flor bonita. Saia do piloto automático”, completa Mary.
Os pequenos (e deliciosos) detalhes
Ao incluirmos toques de beleza e de prazer no cotidiano, refinamos a sensibilidade e aguçamos o bom humor. Sob a influência desses radares, detalhes deliciosos, como uma cena engraçada, uma borboleta no jardim, um gesto de carinho, antes ofuscados pela rabugice, não mais passam despercebidos. “Nessa nova sintonia, não há mais necessidade de somente correr atrás dos deveres. É permitido usufruir cada minuto e, por tabela, ser tomado por sentimentos de paz e gratidão”, afirma Ligia.
Alegria circense
Contemplar o mundo interior e o exterior faz um bem danado. Mas gente ativa gosta mesmo é de movimentar o corpo. Para que a prática não seja influenciada pela ditadura da forma e do desempenho perfeitos, cobranças comuns em tantas modalidades, uma boa alternativa são as aulas de circo. O picadeiro une atividade física vigorosa e diversão, além de emanar a magia que automaticamente nos transporta para a infância. “O circo é ótimo para manter a silhueta e combater o estresse, além de desenvolver a aptidão artística”, conta Rosana Jardim, diretora da Academia Brasileira de Circo, de São Paulo. “Todos nós temos um lado artista, descontraído. Ao externá-lo, deixamos as preocupações da vida adulta do lado de fora da lona.”
Desafios e benefícios
Quem adentra o palco, encontra uma série de opções, cada qual com seus desafios e benefícios. O trapézio turbina a adrenalina e a concentração, além de desenvolver a confiança no parceiro; os malabares desafiam a coordenação motora e a capacidade de ser graciosa; a lira, espécie de bambolê, estimula a flexibilidade e a elegância. O trampolim acrobático promove uma série de saltos e piruetas, alguns deles cômicos, enquanto o tecido sustenta o balé aéreo que acorda cada músculo do corpo, bem como a expressão dos sentimentos. “Em geral, o aluno passeia por todas as modalidades até escolher uma à qual se dedicar”, afirma Rosana.
As memórias afetivas
A bancária Carolina Bergamini caiu, há sete anos, nessa rede, segundo ela, viciante. “Nunca gostei de ginástica, mas precisava de um contraponto em minha rotina de trabalho estressante. No circo encontrei, além do exercício físico, relaxamento, cultura, amizades, diversão”, diz ela, que também aproveitou para se religar a suas memórias afetivas. “Minha mãe sempre foi muito ao circo e eu a acompanhava. Talvez, por isso, me encantei quando comecei a frequentar as aulas.”
Só alegria
Sob a mira de palhaços, contorcionistas e seres “voadores” profissionais, erros e acertos são festejados. Não há reprimendas. Só alegria. O importante, segundo Rosana, é encorajar a autoconfiança dos alunos e o trabalho em equipe. “Como o grau de dificuldade das manobras é alto, torcemos um pelo outro”, diz Carolina. Como boa integrante da patota circense, ela se esforça para não só se entreter, mas também agradar à plateia. “Queremos aprimorar nossos truques para que o público sinta prazer em assistir.”
Trocando o cinza pelo colorido
Quem troca o cinza da seriedade excessiva pelo colorido do circo, da arte, da piada ou de qualquer outra manifestação lúdica, fica assim como Carolina, cheia de graça. “Quando reencontramos o tom de brincadeira, conseguimos desfrutar a vida como um presente, não mais como um fardo. Aprendemos que as tarefas podem ser cumpridas com leveza e alegria”, afirma Ligia Miragaia.
Texto: Raphaela de C. Mello
Fonte: Educar para Crescer