Jênice com Maria Clara: “Não teria uma filha só para salvar a irmã. Maria Clara foi planejada”, Jênice foi a primeira mulher do Brasil a abrir caminho para que a gravidez ajude crianças nascidas com doenças genéticas
Quando os dois irmãos chegaram para dividir a casa em Santos, litoral paulista, Jênyce Reginato, a mais velha dos três, logo decidiu que queria ter família grande. “Adorei a ideia de casa cheia. Já menina passei a sonhar em ter mais de um filho”, lembra.
Não imaginava, porém, que sua segunda gravidez vivenciada aos 32 anos – fruto do casamento com Eduardo Cunha – seria um marco não só pessoal mas também para a ciência brasileira.
A filha mais nova de Jênyce foi planejada não apenas para aumentar o núcleo familiar dos Reginato Cunha. Em um procedimento pioneiro – de selecionar o DNA dos embriões antes mesmo da fertilização in vitro – a caçula Maria Clara chegou ao mundo, no início de fevereiro, com a capacidade de curar a irmã Maria Vitória, portadora de uma doença genética.
Maria Vitória, 5 anos, nasceu com talassemia, um problema no sangue que exige transfusões semanais para evitar a anemia severa. Não há cura via medicamento e o tratamento definitivo é o transplante de medula óssea, parte do corpo que funciona como uma “indústria” de células sanguíneas.
Encontrar um doador compatível para o transplante pode demorar anos. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), responsável por coordenar o banco de doadores para este tipo de transplante, mostram que 25% dos pacientes nunca conseguem a doação. Os parentes podem se candidatar para o procedimento, mas Jênyce, o marido e os familiares não eram compatíveis com Maria Vitória. Até então, a pequena era filha única.
“Um irmão poderia ter as características semelhantes e, com sorte, seria um doador compatível. Pesquisei inúmeros livros e descobri que poderia contar mais do que com a sorte neste processo”, lembra Jênyce.
“A medicina poderia ser nossa aliada e realizar um duplo sonho meu: engravidar pela segunda vez, sem correr o risco da criança também nascer com talassemia, e ainda curar a minha mais velha.”
Outras 3 gestações
Maria Clara então passou a ser idealizada em conjunto pelo casal, pelo geneticista Ciro Martinhago e pelo médico especializado em reprodução humana, Edson Borges. A “gestação” do bebê com 100% de compatibilidade para o transplante – e que pudesse ser o doador medular por meio do sangue do cordão umbilical – durou 24 meses.
A caçula nasceu e as avaliações em laboratório mostraram que, sim, ela pode fazer com que a irmã não precise mais das transfusões de sangue. Em pouco tempo, “tomar o sanguinho” – como a menina chama o procedimento – não será mais necessário e os braços da garota também não serão mais incomodados semanalmente pelas agulhas. O transplante deve ocorrer no final do ano.
Maria Vitória beija Maria Clara: a caçula pode salvar a vida da irmã mais velha
A família Cunha cresceu e Jênyce, ao que tudo indica, também será um marco para outras gestações no País.
“Depois deste caso pioneiro, já começamos o atendimento para a seleção genética dos embriões de 20 pessoas. Já temos três processos de fertilização in vitro em curso, com gametas selecionados (dois para serem doadores compatíveis para crianças com talassemia e um para um portador de anemia falciforme)”, conta Martinhago.
“Pode ser uma luz no fim do túnel para as doenças genéticas e ainda desafogar a fila de espera para o transplante de medula óssea”, afirma o geneticista, que já projeta para um futuro não tão distante utilizar este mesmo procedimento para ajudar crianças com leucemia.
Quando adolescente, Jênyce não imaginava que suas vivências poderiam configurar uma luz no fim do túnel para mães de crianças com doenças genéticas. Ela conta que não tinha ideia de que seus passos despertariam discussões éticas sobre o uso da fertilização in vitro como terapia para portadores de genes doentes – o tema está no cerne das reuniões do Conselho Federal de Medicina, das comissões de bioética e também de instituições religiosas em todo o País.
Fã de rock, aspirante à carreira de modelo, dividida entre as bonecas e as brincadeiras no quintal, quando jovem ela só desejava ter uma profissão com diploma, casar com “um cara bacana” e, quem sabe, ter três filhos. De preferência filhas. Já naquela época, conta, ela pensava em colocar Maria como o primeiro nome para todas. Um nome “simples, forte e cheio de personalidade”.
Perto dos 18 anos, deixou a praia, o calçadão e as festas de Santos para morar em Cerquilho, cidade do interior paulista onde o pai, médico, abriu consultório. Sempre foi rodeada de amigos, mas ao menor sinal de solidão, sabia que podia contar com os irmãos.
“Ainda ganhava uns trocos como modelo, mas o vestibular já estava próximo. Escolhi fazer biomedicina em Marília (também no interior). Fui aprovada, mudei de cidade, deixei de desfilar e de fazer fotos e ainda terminei com o namorado”, conta. A vida tinha mudado completamente, mas a vontade de ser mãe ainda permanecia intacta.
Melhor presente
Em um final de semana de plantão, sem disposição para nada, Jênyce juntou forças e foi a uma festa de casamento em Cerquilho. Na pista de dança, encontrou Eduardo. Casaram e, depois de dois anos, o ultrassom mostrou que uma menina estava dentro daquela barriguinha crescente.
A gravidez foi tranquila. Maria Vitória nasceu com a cara do pai, o jeito da mãe, e com a mistura dos genes de ambos. Infelizmente, os dois eram portadores do gene da talassemia. Logo a bebê que enchia a casa de alegria começou a ter manchas no corpo e febre alta. Os exames mostraram a alteração nas células sanguíneas. Desde então, Maria Vitória começou a receber transfusões de sangue.
“Quando chega perto da data da transfusão, ela já fica mais fraquinha, como se a bateria estivesse acabando. Sei que ela não corre risco de morrer por causa da talassemia, mas é uma complicação na vida dela.”
Jênyce começou então a pesquisar, estudar e descobriu que no exterior já eram estudadas técnicas para selecionar os embriões completamente compatíveis para o transplante. Um dos maiores pesquisadores por trás destes experimentos era o brasileiro Ciro Martinhago. Maria Vitória estava com 2,5 anos, “já na fase de ganhar uma irmãzinha”, pensava a mãe.
Um dos pontos mais debatidos e polêmicos do processo que garantiu a segunda gestação de Jênyce simultaneamente à garantia de que Maria Clara será a doadora do cordão umbilical para para Maria Vitória foi: será certo gerar uma criança só para salvar outra pessoa, sem respeitar o direito individual? Jênyce (pode surpreender) mas responde não para a dúvida acima.
“Não teria uma filha só para salvar a irmã. Maria Clara foi planejada, eu queria muito uma segunda gravidez”, diz.
A mãe reforça: mais do que não precisar mais das transfuões, o melhor presente que Maria Vitória poderia ganhar é o prazer de ter uma irmã. Daqui três anos, talvez, a dupla de Marias vire um trio. Jênyce gostaria de trazer o mundo a Maria Eduarda, as três marias sonhadas lá na infância.
Fonte: IG