Nos arredores de Puerto Vallemí, um povoado com 9 mil moradores no norte do Paraguai, está instalada a única empresa produtora de cimento do país. Ali, a poucos quilômetros da cidade, a Indústria Nacional del Cemento escava há décadas um paredão rochoso de 640 metros de altura do qual sai boa parte do calcário usado na construção civil paraguaia e a poeira branca que cobre a cidade nos dias de vento forte. Vasculhando as escavações da mineradora e cavoucando barrancos nas estradas da região, o geólogo brasileiro Lucas Warren encontrou recentemente o que chama de “mina de ouro da paleontologia”.
As rochas que trouxe de lá e hoje ocupam uma grande mesa de sua sala no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) estão incrustadas com pequenas estruturas alongadas – elas têm, em média, 1 centímetro de comprimento – que lembram minhocas aprisionadas em um bloco de lama endurecido pelo sol. Mas são algo muito mais raro, encontrado em pouquíssimas regiões do mundo. São fósseis do que provavelmente foram os primeiros seres vivos com esqueleto que surgiram no planeta.
Especialista em sedimentologia e paleontologia, Lucas estima a idade dos fósseis em 550 milhões de anos, a mesma das rochas de Puerto Vallemí. O geólogo Eric Tohver, pesquisador da University of Western Australia que colabora com a equipe da USP, tenta atualmente datar as rochas contendo os fósseis por técnicas mais precisas. Se a idade for confirmada, esses fósseis estarão entre os mais antigos de animais com esqueleto biomineralizado, ao lado dos achados na Namíbia, sudoeste da África, que viveram há 549 milhões de anos – fósseis encontrados mais recentemente na China sugerem que esse tipo de animal possa ter existido até mesmo antes, mas a identificação deles ainda é incerta.
São poucas, cinco ou seis, as espécies conhecidas dos primeiros seres visíveis a olho nu que produziam esqueleto. E, segundo os registros fósseis, elas existiram por pouco tempo, de 550 milhões a 542 milhões de anos de atrás. Em Puerto Vallemí, Lucas e o geólogo paraguaio Alberto Cáceres encontraram exemplares de duas espécies já conhecidas e ao menos mais uma ainda não descrita pela ciência. Também identificaram vestígios de seres vivos de corpo mole que viveram na mesma época e deixaram marcas semelhantes a rastros impressas nas rochas.
Pode parecer pouco, mas não é. Encontrar registros de duas ou mais dessas espécies vivendo no mesmo período e na mesma região é muito incomum. Antes de Vallemí, essa convivência havia sido observada na Namíbia, no Canadá, no Brasil, na China, em Omã e na Rússia. “A qualidade dos fósseis encontrados no Paraguai e a variedade de espécies tornam essa coleção uma das mais completas e representativas da fauna daquele período”, comenta o paleontólogo Thomas Fairchild, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, que, com Lucas, Mírian Pacheco, Claudio Riccomini, Marcelo Simões e outros colaboradores, descreveu os fósseis de Puerto Vallemí.
Lucas encontrou esses fósseis em uma área delimitada a oeste pelo rio Paraguai e a norte pelo rio Apa, na fronteira com Mato Grosso do Sul, onde os geólogos Paulo Boggiani e Claudio Gaucher já haviam achado um fóssil de um desses animais. Muitas das amostras coletadas por Lucas – algumas ocupam duas mãos abertas – têm centenas de esqueletos fossilizados, aprisionados em uma camada de quase 1 centímetro de espessura.
Ele não buscava fósseis quando chegou à região. Nas primeiras expedições em 2006, no início do doutorado sob a orientação de Boggiani, Lucas planejava mapear a evolução da bacia sedimentar da região que se estende por Mato Grosso do Sul, Bolívia, norte da Argentina e parte do Chile. As rochas de lá indicavam que essa região havia sido ocupada pelo mar. Há 550 milhões de anos, os continentes tinham uma conformação bem diferente da atual. O imenso bloco continental sobre o qual se assentam a Amazônia e o Paraguai estava isolado do restante da América do Sul, numa posição mais austral (ver mapa). Esse trecho do continente sul-americano formava um mar raso, de águas límpidas e hipersalinas.
Foi nesse cenário que os seres com esqueleto de Puerto Vallemí provavelmente viveram. A forma como estão preservados nas rochas indica que viviam ancorados nos sedimentos do fundo, uma esteira esverdeada de cianobactérias que, ao fazer fotossíntese, retiravam gás carbônico da água e o transformavam em carbonato de cálcio.
A maior parte dos fósseis dessa região pertence a animais de dois gêneros: Corumbella eCloudina. Os primeiros foram descritos em 1982 pela equipe do geólogo alemão Detlef Walde, da Universidade de Brasília. Rochas coletadas na região de Corumbá, Mato Grosso do Sul, continham fósseis de esqueletos com a forma de uma pirâmide invertida. Os maiores exemplares dessa espécie, denominada Corumbella werneri, alcançavam 10 centímetros de comprimento – no Paraguai eles chegam a 5. Apesar de a espécie ter sido identificada há três décadas, a composição do seu esqueleto ainda não é bem conhecida. Analisando exemplares de Corumbella, a paleobióloga Mírian Pacheco e Juliana Basso, do IGc, em parceria com pesquisadores do Laboratório de Astrobiologia e do Instituto de Química da USP, e da Universidade do Vale do Paraíba, constataram recentemente que o esqueleto desses fósseis tem uma concentração importante de material orgânico – possivelmente à base de quitina, o polissacarídeo do esqueleto dos insetos.
Lucas, Mírian e Fairchild também encontraram poros e papilas microscópicas no esqueleto desses animais. Descritas em artigo publicado em agosto deste ano naGeology, essas características indicam que o esqueleto foi produzido por um cnidário, o grupo ao qual pertencem medusas, anêmonas e águas-vivas. São animais com corpo mole bastante simples – basicamente uma cavidade digestiva e uma oral, em alguns casos rodeada por tentáculos com células urticantes.
Até onde se sabe, a distribuição de Corumbella é restrita. Além de Corumbá e de Puerto Vallemí, exemplares desse gênero só foram encontrados na Califórnia. Já os animais do gênero Cloudina eram mais cosmopolitas. Os primeiros exemplares, que teriam vivido há 549 milhões de anos, foram identificados em 1972 na Namíbia. Posteriormente sua presença foi confirmada em quase uma dúzia de países, e agora no Paraguai.
Menores, os fósseis de Cloudina não passam de 3 centímetros. Seu esqueleto lembra casquinhas de sorvete ou copos de café empilhados. É composto por camadas de carbonato de cálcio, depositadas à medida que o animal que habitava seu interior crescia. Mais rígido e de origem exclusivamente mineral, o que facilita a fossilização, esse esqueleto parece ter garantido mobilidade o suficiente para o animal – de corpo mais complexo, provavelmente um anelídeo, grupo a que pertencem as minhocas e os poliquetas (vermes marinhos) atuais – serpentear ao sabor das ondas.
Não se sabe ao certo por que a capacidade de produzir esqueleto surgiu no reino animal, provavelmente mais de uma vez, mas três hipóteses tentam explicar. Uma delas sugere que a capacidade de produzir esqueleto mineral seria uma forma de eliminar do organismo níveis elevados do carbonato de cálcio extraído da água do mar. Ou seja, seria um mecanismo de desintoxicação. Há também quem pense que o esqueleto, uma vez surgido ao acaso, teria representado uma vantagem adaptativa por dar a sustentação necessária para esses animais alcançarem alimentos disponíveis acima da camada de sedimentos. “Estar 1 centímetro acima do fundo pode ter permitido explorar uma região sem competidores”, diz Lucas.
Mas ele, Fairchild e os outros pesquisadores do IGc apostam numa terceira possibilidade: o esqueleto, surgido ao acaso, funcionaria como uma armadura que aumenta a chance de sobreviver ao ataque de predadores. A razão que os leva a acreditar nessa hipótese é a coexistência de seres com estratégias distintas de produção de esqueleto – os exemplares de Cloudina, que extraem a matéria-prima da água, e os de Corumbella, que sintetizam em grande parte a partir de compostos orgânicos.
A predação, aliás, era uma forma de interação completamente nova. A vida surgiu na Terra há 3,5 bilhões de anos. Os primeiros seres vivos, as bactérias, tinham apenas uma célula, uma espécie de bolsa minúscula contendo material genético e proteínas. E pelos 3 bilhões de anos seguintes pouca coisa mudou. Alguns seres unicelulares passaram a viver em colônias, em que cada grupo de células executava funções diferentes. Mas, juntas, não formavam um organismo. Só entre 580 milhões e 560 milhões de anos atrás é que começaram a aparecer os primeiros organismos multicelulares, de corpo gelatinoso organizado em tecidos e formas incomuns (disco ou pena), conhecidos como biota de Ediacara.
Foi nessa época que apareceram os primeiros seres vivos capazes de se deslocar sobre os sedimentos no fundo dos mares”, conta Fairchild. Até então eles viviam fixos e fabricavam o próprio alimento usando a luz solar e os nutrientes disponíveis no ambiente. “Antes do surgimento do esqueleto, a vida era paz e amor”, brinca.
Seja qual for a razão da origem do esqueleto, o fato é que essa estrutura parece ter influenciado radicalmente a vida no planeta. Assim que os primeiros seres com armadura desapareceram, há 542 milhões de anos, floresceu uma imensa variedade de seres vivos com corpos cada vez mais complexos, precursores de todos os organismos que vivem hoje. Essa mudança é a chamada explosão de vida do Cambriano. “Quem quiser entender melhor o que aconteceu nessa fase de transformação da vida no planeta”, diz Lucas, “não vai poder ignorar os fósseis de Vallemí”.